quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Eu sou apocalíptica!

 

Meu mestre percebeu a presença de um ser estranho querendo adentrar em meu campo gravitacional.

Meu mestre, sábio que é, sentia que aquela aproximação poderia ser perigosa e fatal para mim. Natural de seu instinto protetor.

Para meu mestre, Lúcifer, eu sempre fui uma musa, uma divindade. Ele me ama, me cuida, e eu gosto de receber o amor que ele me dá, e que só aumenta a cada encontro.

Diferente do intrigante “homem do terno azul” que se aproxima de mim.  Para ele eu sou apenas uma presa suculenta e corada, fresca e ideal para ser devorada e depois largada só a carcaça ao  habitat natural.

 Ele me caça e eu assustada, fujo. Ele me procura já há algum tempo através de seu inconsciente. Então eu corro  e desafio as leis da física para me proteger de seu ataque.

 Ele não irá me encontrar tão cedo, depois que meu mestre, me emparedou e disse:

-Lilith, se afaste o quanto antes desse homem. Nós somos das artes, criamos belezas, enfeitamos o mundo. Ele encobre feiuras, e por isso é incapaz de apreciar a sua magnitude, que eu tanto venero.  

-Eu sei de tudo isso! Eu sei mestre! Mas o que hei de fazer se ele vier até mim?

-Não deixe ele entrar mais na sua vida! Bloqueie-o. Não permita que ele encontre espaço para chegar até você, ou então serei eu que me afastarei de ti!

As palavras de Lúcifer, martelaram na minha mente, eu nunca havia visto ele naquela forma antes. Já o vi como o Guardião do tempo, como o  Guardião da luz, mas ele falava dessa vez como um pai preocupado em perder sua filha para o verdadeiro mal.

 -O que são sangue de animais comparado ao sangue de pessoas? - Filosofava Lúcifer.

Seu discurso de alerta, me fez relembrar o quanto  sou incrível, eu que  vibro na quarta dimensão!! O meu caminhar e os meus movimentos, mesmo que lentos, fazem barulho  e meus passos são escutados lá longe, nas mais altas coberturas, onde meu cantar sombrio reverbera.

Mesmo que o “homem do terno azul” não queira me sentir, ele me fareja com todos os seus sentidos porque é inevitável e seu instinto de alfa, anseia em me dominar e sentir o gosto de minha carne, de minha carne inteira...

-Mas eu sou indomável, Lúcifer!  Já sobrevivi a muitas guerras e muitos ataques ferozes, ele não vai me possuir! Não duvide de minha lealdade a você! Mas se ele se dirigir a palavra, responderei porquê sou educada e acima de tudo, como bem sabe, sou política! –respondi ao mestre

- Você é apocalíptica Lilith!!! Você está além da compreensão deste sujeito predador! Seja um mistério, não se abra! Só de falar nesse homem sujo eu já me sinto carregado. Para o nosso bem, elimine-o da sua vida já, antes que as verdadeiras trevas assombrem nosso reinado!

 

A sala silenciou. 

Em seguida, eu repeti 6 vezes: Eu sou apocalíptica! Eu sou apocalíptica! Eu sou apocalíptica! Eu sou apocalíptica! Eu sou apocalíptica! Eu sou apocalíptica!

Acatei as palavras do meu mestre amado, segui minha trilha, um pouco desnorteada e  até abalada com o diálogo pesado que tivemos. Mas segura de minha intenção: não deixar o “Homem do terno azul” chegar perto de meu campo gravitacional.

Então, para o bem de minha tribo, acendi uma vela preta e fiz uma reza:

-“Para que eu não venha a me queimar com o seu fogo, homem, que ele se apague. Para que eu não venha a ruir tentando te concertar, que você encontre a paz em outro corpo. Para que eu não acabe desvairada, que a terra firme meus pensamentos e te afaste também de meu cérebro! Para que tu não percorras  mais as propriedades sagradas de meu corpo, que o vento te leve para bem longe de mim, homem do terno azul”.

A vela demorou, e com certa resistência ,queimou . Ali restou apenas escuridão, o silêncio, e, no ar vazio, o cheiro daquele incenso de Iemanjá, nossa mãe.


sexta-feira, 1 de outubro de 2021

O gosto amargo de Marcela


 A RUA DA ZINA


Localizada na cidade de Navegantes, litoral de SC, há duas quadras da praia central. Ali onde o mar era traiçoeiro e violento, bem como as pessoas que ali habitavam; bem como Marcela, nova moradora daquela comunidade, ainda inocente. 

Ainda. Inocente. Se corromperia e ainda nem sabia. 

  Era uma rua comprida, com pequenos bares, lotados de meninas que vinham de todo Brasil com o objetivo de vender seus corpos, na noite. 

Na noite  e no dia. Na manhã e na tarde, porque eram turnos intermináveis de 24h por dia, onde as gerentes revezavam horários para trabalhar.

A rua da Zina nunca silenciava, assim como as lágrimas da menina Marcela, que acabara de cair ali de paraquedas, naquele antro de prevaricações e imundícias.

Marcela, era o nome de guerra da mais nova Acompanhante de Luxo, vulgo puta, que viera do interior, na tentativa de faturar um dinheiro com sua beleza, já que, com seu talento ela havia desanimado.

Marcela era seu nome de guerra. Marcela. Guerra. Quase rima.... 

Guerras, viriam depois.  

 Ela disse que era Marcela como aquele chá: ruim, mas que quando a "coisa enfeiava " todo mundo procurava pra curar suas dores de barriga da vida.

Era quase véspera de natal. Dezembro de 2018, foi numa madrugada daquele maldito verão. Digo  maldito com todas as minhas forças. Maldito! 

Maldito verão de Marcela! Maldita hora em que acreditou Marcela,   que  uma semana no litoral se prostituindo iria resolver sua vida maldita. 

Coitada daquela maldita...

Desceu  na rodoviária de Itajaí, apenas com uma mochilinha nas costas, contendo umas três peças de roupas e mil preocupações. Um motorista de Uber a aguardava, ordenado pela dona do estabelecimento onde a jovem iria trabalhar. Atravessou a balsa Ferry Boat pela primeira vez, em direção há uma das muitas casas de prostituição de Navegantes, uma boate chamada Dellas Bar. 

O carro foi estacionado em frente aquele lugar que tinha uma placa quadrada e rosa, com o desenho de uma mulherzinha preta de salto alto, segurando na mão uma taça fina.  Ela desceu, assustada, e já foi recepcionada no portão por um gay muito sorridente chamado Lucas. 

-Seja bem vinda, se quiser já pode ficar no salão trabalhando Marcela! Vou te mostrar!

-Prefiro ir dormir agora, pois a  viagem  foi cansativa! 

- Como preferir gata! - disse a pessoa sorridente -Você só trouxe essa bagagem Marcela?

-Não, eu trago também a bagagem emocional, essa é bem pesada, mas ninguém precisa me ajudar a carregar. E mesmo se quisessem, não poderiam.

-Então, amanhã vamos arrumar um quarto pra ti, a casa está lotada esse mês. 

Lucas a mostrou o salão e apresentou a moça pra gerente daquele turno.  A gerente se chamava Fernanda, sua esposa.  Sua esposa que era travesti. 

 (...)