quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

O homem que eu esfasquiei e virou um encosto

 

1-O homem que eu esfaqueei e virou um “encosto”

Que Deus o tenha, primeiramente. E acima de tudo, que ele vá para luz. Eu acho que ele foi mesmo, pelo tanto que foi rezado por sua alma, desde quando se manifestou no terreiro.

Os maços de velas que eu acendi, os Pai Nossos e as Aves Marias, os defumadores que acendi  na porta de casa dizendo:

-Aqui você não entra, aqui você não entra, aqui você não entra!

Quando ainda vivo, o conheci numa boate em Navegantes, próximo  a meia-praia.

Naquele tempo em que eu era apenas uma alma perdida na vida, fui estuprada por um bando de homens de uma facção.

Acordei numa casa de tijolos, deitada no chão sem calcinha.  Sentia dor no corpo, estava com queimaduras de bitucas de cigarro na coxa,  e pequenos cortes na vagina.

Lembro que já havia sentido aquela sensação antes, deveria ter sido um “cinderela”.

É horrenda a sensação de acordar pelada, sem lembrar de nada e com um estranho sorrindo pra você.

- O que aconteceu?- Perguntei ao homem, enquanto procurava minhas roupas naquele ninho imundo.

-Você não lembra? – respondeu com outra interrogação.

-Não lembro.

-Você estava com um cogumelo gigante, drogou todo mundo – Dizia e ria.

Enquanto eu me vestia, uns flashes da noite anterior apareciam na minha lembrança. E não eram imagens bonitas. Abri a bolsa imediatamente e senti falta de um documento muito importante que eu carregava comigo: meu Alvará de Soltura da prisão.

 

“Isso foi uma armação, claro”- pensei.

Saí correndo de lá e fui até o mocó onde eu me escondia, na casa de um servo, era assim que u chamava alguns homens que reconheciam a rainha que eu era, mesmo sendo uma rainha da rua, da sujeira, do craque, da desgraça.  Mas mesmo eu estando desgraçada, eu ainda tinha sorte e meu cérebro às vezes colaborava, digo, meu instinto colaborava. Quando eu não estava me metendo numa cilada, eu estava fugindo de uma alguma.

Chegando no mocó, cheirei um pó e fiquei ativa. Ligamos  os pontinhos, juntei as pistas e decidi que iria  as caças de quem me fez aquela maldade.

As meninas de Caçador eram conhecidas naquela região pela fama de “faca na bota” , e eu honrava o nome das caçadorenses, era destemida, já vinha de muitas guerras...

-Marcela, você está toda machucada, e essa ferida na sua testa? O que é esse triângulo? Quem fez isso em você? –Interrogava- a, o servo, preocupado enquanto me preparava uma limonada.

-Isso aí eu que quis fazer no dia do meu aniversário. Foi uma tatuagem sadomasoquista com arame de ferro quente.- respondi.

-Você é muito doida Marcela, é disso que eu gosto em você. Não é como as outras, é muito doida. Vamos lá na restinga da praia dar um fincão? Ou aqui mesmo? – Pronunciava as palavras eufórico, baixinho e gargalhando entre uma palavra e outra.

-Agora não posso, servo Leonel. Tenho uma alma pra sacrificar.

Esperei escurecer, me fantasiei de prostituta, e fui caçar. Eu queria vingança com as próprias mãos, era assim que eu agia: eu por mim. Já estava acostumada com a ideia de que nenhum mocinho iria aparecer pra me salvar.

Eu saí do mocó com destino certo, era na mesma rua a zona onde eu iria encontrar algum daqueles homens que me fizeram maldade na noite passada.

No caminho avistei um deles na esquina conversando com a polícia. Achei estranho, afina aquele cara era traficante e também matador de uma facção muito forte que atuava na milícia regional. Logo desconfiei.

Quando eu estava quase chegando na zona, o servo Leonel me alcançou de bicicleta e disse:

-Marcela, cuidado, o Pedro contou que viu você levando um pau da polícia ontem, que te apagaram e colocaram você na viatura. 

-Onde?- respondi

-Próximo ao déc da praia – disse

-Hmm, agora tudo faz sentido. Já sei o que houve.

-Te cuida o Marcela, te espero.

-Eu apareço

-Uma hora ainda vão te apagar, eu oro pra Deus por sua vida, pra que não te achem morta nessa praia um dia desses.

-Eu sou a Marcela, sou ruim lembra, não morro fácil.

Chegando na porta da boate, vulgo zona, identifiquei um deles. Estava  bebendo com duas mulheres, e o Pintado estava junto. O Pintado era o matador da facção que há uns minutos atrás estava de conversinha com a Polícia militar na esquina, foi com ele que eu comecei a noite anterior, antes dos policiais me baterem e me jogarem dentro da viatura. “Será que o Correia me bateu? Como ele teria coragem? Acho que teria sim porque uma vez ele me espirrou pimenta na boca’”. Correia era um dos soldados por quem eu era apaixonada na época, mas não vem ao caso agora.    

-Oi Pintado, oi Alex! Hoje eu quero beber com você Alex! – Pintado estava muito ressabiado. Evacuou do local imediatamente com minha chegada.

Então entrei em ação.

Roubei Alex das meninas que estavam com ele na mesa, sentei em sua perna, bebi uma cerveja e segui com o plano.

Eu queria mesmo era me vingar do Pintado, que armou toda aquela emboscada. Mas ele não era uma presa tão fácil. Então escolhi Alex pra ser minha vítima.

“ Seria a polícia que roubara meu Alvará de Soltura ou o faccionado?”

  Eu havia sacado tudo o que havia acontecido. Até as putas me olhavam diferente e cochichavam pelos cantos. 

-Quero que você vá passar a noite comigo, vamos cheirar uma “borsa” , estou apaixonado por você Marcela. Por favor venha comigo, saia desse lugar. Deixe eu cuidar de você- Dizia minha vitima

-Deixo. Quer ser meu servo sexual então?

Até hoje me surpreendo com meu poder de sedução daquela época. Mesmo eu lá com aqueles dreads no cabelo e com ferida na testa, a minha persuasão e magnetismo eram sempre infalíveis quando eu me obstinava à missão que fosse. Eu já era pra ter dominado o mundo...

Mas até então eu dominava apenas aquele momento.

 -Moro aqui perto. Eu estou de moto, mas trouxe apenas um capacete- Disse Alex

-Então vamos , não tem problema – Respondi

Subi na moto na garupa de sua moto, sem capacete mesmo. Era noitinha. Ele acelerou e meus dreads pretos voaram. Dreads  que eu mesma havia feito naquele aplique barato.

Chegando em sua casa, subimos uma escadaria de madeira até seu quarto, que era uma espécie de sótão. 

A casa era bem rústica, inacabada.

Depois que cheiramos toda cocaína, transamos. Lembro que foi um tanto sofrido aquele sexo, visto que  aquele homem estava sob efeito da droga estimulante. Ele parecia um adolescente apaixonado, falava até em casamento; enquanto em minha mente vingativa só havia um desejo: livrá-lo daquela vida.

Quando então, finalmente, ele dormiu. Finalmente.

Eu vesti minha roupa, desci aquelas escadas e fui até a  cozinha. Abri a gaveta dos talheres e peguei a maior faca que eu encontrei.

Subi lentamente os degraus até o sótão para que o homem não acordasse.

 Ele dormia de se babar. Fiquei olhando pra seu pescoço por uns minutos, para ter certeza de que era aquilo mesmo e  que eu não iria me arrepender. 

“É agora menina”, eu pensava. Então segurando a faca em pé, golpeei seu pescoço com um furo. Lembro que a textura de sua pele era muito grossa e no segundo golpe ele acordou com os olhos arregalados. Continuei o esfaqueando, pela região do pescoço e do peito. Muito sangue saia, escorria e jorrava em minha direção, especialmente em meu rosto. Mas eu não queria parar de esfaqueá-lo, mesmo ele pedindo pra eu parar, até que ele segurou em meus pulsou e tomou aquela faca  enorme e sem fio de mim. Eu deveria ter verificado se a faca estava boa de fio, ou deveria ter passado a faca precisamente em alguma veia carótida . Mas falhei.

Falhei pela segunda vez, em minha segunda tentativa de tirar uma vida humana.

-Por que você fez isso comigo? O que eu fiz pra você?- Ele perguntava com os olhos vermelhos de espanto

-Por que vocês fizeram aquilo comigo? Olha o que vocês fizeram comigo! – Eu gritava chorando, com medo que ele me matasse.

- Vou ligar para os bombeiros- Falei arrependida

-Vá embora daqui, desapareça da minha casa- Então ele soltou meu braço, eu abri a porta e saí correndo

O dia estava já clarinho. Na rua, notei que eu estava perto da delegacia onde eu era popular por lá. Cheguei desesperada e ensanguentada, por sorte quem estava de plantão era o Agente Marcos.

-Tem um homem morto há duas quadras daqui, eu matei ele, me estupraram, ele deve estar morto agora – Eu dizia eufórica e em choque

-Meu Deus menina, você precisa ir  embora dessa cidade, vá embora daqui, desapareça da orla – Ele me olhava preocupado, coitado

Então eu saí da delegacia e fui em direção à orla da praia. Tomei um banho de mar, lavei o sangue do meu corpo.

Dormi numa daquelas casinhas de madeiras que fazem parte do déc da praia. Tentei dormir, porque eu estava com o coração disparado de adrenalina. Logo chegaram uns bêbados da rua já conhecidos. Com eles bebi pinga pura, fumei pedra e depois perambulei pelo centro da cidade.

Eu estava com a roupa só os trapos, tinha mania de rasgar minhas roupas pra parecer uma andarilha sensual.

Passou-se um dia inteiro.  Voltei pra famosa “rua da zina” e pra minha surpresa, enquanto eu bebia um martelinho já cedo num boteco, avistei Alex, com curativos no pescoço, carregando no colo, uma menininha de uns 3 anos de idade.

Eu vi ele, e ele me viu, abaixou a cabeça e seguiu.

 Nunca me esqueço do olhar triste daquele homem. Antes de eu me reabilitar ainda o vi algumas vezes naquela mesma rua. Recordo que ainda o pedi perdão naquele mesmo bar e nos abraçamos. Talvez eu tenha sido a mulher mais louca que cruzou  seu caminho.

Hoje fazem 4 anos que me libertei do craque  e superei a rua.

Conheci um empresário Italiano que me tirou das ruas e enxergou um ser humano bonito em mim.   Me reabilitei, me tratei dos traumas, encontrei pessoas boas que tiveram paciência comigo durante esse  processo.

Comecei a trabalhar como médium num terreiro de Umbanda, ali foi onde pude entender muita coisa sobre o que aconteceu no meu passado. A fé me ajudou a sarar, me encontrar, e “firmar a cabeça”.

Há alguns dias atrás, eu estava sentindo uma tristeza muito grande, que parecia não ser minha. Eu chorava o dia inteiro no meu trabalho, e chorava de soluçar, tudo era motivo de choro.

Então durante uma sessão no terreiro, uma entidade de luz que estava incorporada numa das médiuns da casa olhou pra minha direção e disse:

-Eu não quero ele aqui, ele pode estar aqui

-Quem?- Eu perguntava, enquanto sentia um arrepio gelado encostando em meu corpo, era ruim aquela energia

-Tem um homem aí com você, um baixinho, moreno – Eu não fazia ideia de quem poderia ser

-Ele morreu há 3 anos e ele está te acompanhando, ele está muito triste com você – Dizia a mulher incorporada

Os outros médiuns, incorporados e desincorporados, estavam assustados também com aquela situação incomum no terreiro. Aquele espírito sofredor estava ali, e eu me segurava pra ele não se manifestar em mim.

Então me aproximei do Guia  e pedi baixinho:

-Quem você está vendo? Eu não sei

-É um homem que você feriu, ele morreu e não encontrou a luz ainda, por isso te segue, essa tristeza que você sente não é sua

-Mas eu não matei ele, eu lembro. Eu vi ele vivo dias depois que eu o esfaqueei, não é possível

Então, todos os médiuns vieram em volta de mim, e eu me segurava, me continha  pra ele não” baixar” em mim, até que ele “baixou”, e estava furioso. Ele abaixou a cabeça, olhava por baixo e com muito ódio.  Lembro da força do seu ódio em mim. Mas mesmo eu sendo ainda uma médium em desenvolvimento, consegui mandar ele embora, pois eu também era forte, e sou forte, muito forte. Também com a ajuda das defumações e rezas em volta de mim. Senti muito medo, mas ele se foi dali, e o ambiente suavizou.

-Quando chegar em casa fia, antes de entrar na porta, acenda esse defumador e repita três vezes “Aqui você não entra”. Você é muito forte fia, não se culpe pelo seu passado, aqui ninguém está te julgando.  Você é a nossa menina. Você está indo muito bem menina, salve!

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